Eu tinha uma dor. Ela, sua cura. Talvez não soubesse, mas a cada passo dela podia ver a cura da minha dor se mexendo de um lado para o outro, vivendo, amando, caindo e reconstruindo o que perdeu no meio termo, sem mim. Eu tinha uma dor, filmes antigos, chás importados e lps caros, além da insanidade oposta à desventura de viver. Eu tinha barba malfeita, uma pilha de livros escritos e nunca vendidos, orgasmos secos e frios como os cafés pela manhã e os almoços antes do cair da tarde em que esperava ela passar, todos os dias no mesmo bar. Ela tinha uma jaqueta de couro cheira de rebites, era a adolescência, eu pensava. Tinha também um semblante árduo e meio impuro, impossível era saber o que ela estava pensando ou querendo demonstrar enquanto passava na frente do bar. Aquele era o limite, a porta de entrada era meu mundo e a rua era o mundo dela, no instante em que ela transpassava o meu lado era como se estivesse invadindo minha vida, entrando no campo do meu olhar e querendo me provocar mexendo os cabelos levemente, tragando aquela fumaça de seu cigarro devagar, me fitando nos olhos.
Eu tinha tesão e ela um desvario. Nesse tempo já havia escrito cartas, sonetos, poesias, tudo para ela, hipócrita, que nunca havia visto. Que nunca havia nem perguntado meu nome, nem minha idade, nem onde eu morava ou por que passava tanto tempo só a observando passar. Por que seria de seu interesse, além? Observei tantos dias ela passar que o seu caminhar foi ficando tão monótono como o resto da vida, por tempos, o olhar era vazio e reparei que tinha emagrecido demais, a jaqueta havia desbotado e os rebites estavam enferrujando. Suas botas de soldado pareciam compradas em algum camelô ou importadas do Paraguai. Eu, homem renovado achei que havia esquecido o por que de passar tanto tempo olhando-a sem receber nenhuma resposta.
Ela tinha dezesseis anos e um intenso desejo de se mostrar para o mundo, escorpião abundante e alguma junção em libra. Uma mancha na perna esquerda e paixão por literatura francesa, algumas recuperações escolares por falta de presença e uma relação horrível com os pais – aquele maldito que a olhava com a língua e queria ensiná-la sobre educação sexual, diria. Só para não soar tamanha a falta de pudor -. Ela tinha nojo de muitas coisas, só não nojo de perigo: álcool, drogas, nicotina e sexo. Nunca mediu esforços para saciar seu desejo pelo imoral e fora da lei.
Ela passava todos os dias na frente de um bar, dentro havia um homem mais velho, parecia maduro, até. Barba malfeita, um charme indecifrável e um olhar fulminante, a olhava nos olhos e nos seios, mas parecia até sentir seus anseios. Ela tinha uma dor.
Ele, sua cura.
Mas ela nunca soube.
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